Divergência na sustação do cheque

Debruçado no estudo sobre títulos de créditos, notadamente o cheque, visualizamos nos manuais de direito comercial um tema de grande relevância, em razão da aplicabilidade prática da matéria, porém com entendimento, a nosso ver, pouco coerente.

O paradoxo encontrado consiste na afirmação segundo a qual não constitui argumento válido para se efetuar a sustação do cheque (impedir sua liquidação), o descumprimento, pelo seu beneficiário (credor), da obrigação subjacente da qual fez nascer o título de crédito, ainda que este não tenha entrado em circulação.

Inicialmente, antes de apresentar os motivos pelos quais pensamos que este entendimento é um paralogismo, isto é, um falso raciocínio, cumpre-nos fazer algumas explanações sobre o tema a fim de facilitar a compreensão dos leitores.

O cheque é uma espécie de título de crédito, estando disciplinado pela Lei 7.347/85, Decreto 57.595/66 e, supletivamente, pelos artigos 887 a 926 do CCB.

Além das mencionadas legislações, o cheque é regido, assim como outras cambiais, pelos princípios da Cartularidade, Literalidade e Autonomia. Deste último princípio, emerge os subprincípios da abstração e o da inoponibilidade de exceções pessoais contra terceiro de boa-fé.

O princípio da Cartularidade traz a ideal segundo a qual o crédito deve estar materializado num documento, pressupondo sua posse para o exercício dos direitos nele representado. Somente quem exibe a cártula pode pretender a satisfação de uma pretensão ao direito documentado pelo título (v.g, não se executa título de crédito apresentando em juízo a sua cópia, sendo necessária a exibição, junto a peça inicial, do documento original)[1].

O princípio da literalidade, por sua vez, assegura a certeza quanto à natureza, ao conteúdo e a modalidade da prestação prometida ou ordenada na cártula. Só pode ser exigido em juízo o valor expresso no título do crédito. Qualquer obrigação disposta em instrumento apartado não tem eficácia sobre a cambial, ainda que com ela guarde relação.

Por outro norte, pelo princípio da autonomia, quando um único título representa mais de uma obrigação, a eventual invalidade de uma delas não prejudica as demais. É o exemplo da pessoa que compra um carro com vício redibitório e, como forma de pagamento, saca um cheque em favor do vendedor, sendo o título posteriormente transferido a terceiro mediante endosso.

Nesse caso, como houve a circulação da cambial, esta ganhou autonomia em relação ao negócio jurídico do qual originou a sua emissão, devendo o sacador (emitente do cheque), portanto, garantir o pagamento da quantia revelada no título de crédito, independentemente do vício constatado no automóvel adquirido. Significa que embora tenha o endossatário recebido cheque oriundo de um negócio jurídico defeituoso, o direito cambial assegura-lhe o pagamento do título em razão do princípio da autonomia.

Ocorre que a cambial se desvincula do negócio jurídico o qual motivou sua emissão (subprincípio da abstração) e, com isso, imuniza o terceiro beneficiário do crédito de qualquer problema em relação às obrigações anteriores a sua (subprincípio da inoponibilidade de exceção pessoal contra terceiro que agente de boa-fé).

Nesse sentido, supondo que endossatário ajuíze uma ação de execução face ao emitente do cheque, não pode este alegar, nos embargos à execução, matéria estranha a sua relação com o endossatário. Em outras palavras, não pode o executado (emitente do cheque), para se livrar da obrigação de pagar a quantia representada na cártula, asseverar que não irá liquidar o cheque em virtude do veículo adquirido junto ao beneficiário (endossante) conter vício redibitório.

Diferente seria se o título fosse executado pelo próprio vendedor do automóvel. Como a cambial não entrou em circulação, logo não ganhou autonomia em relação ao negócio jurídico do qual proveio. Assim, poderia o comprador do veículo, em sua defesa, alegar que não liquidou o cheque porque o demandante o vendeu carro com defeito oculto e que isto diminuiu substancialmente seu valor.

Realizado estes breves comentários, passemos a questão que nos interessa: mostrar porque é um paralogismo o entendimento segundo o qual não constitui fundamento capaz de sustar um cheque, o fato de seu portador descumprir com a obrigação que o fez nascê-lo, ainda que o título não tenha entrado em circulação.

Contrariamente a este entendimento, leciona Fábio Ulhoa:

“Convém, nesse sentido, esclarecer que não autoriza a sustação o descumprimento da obrigação pelo portador do cheque. Imagine-se que o prestador de serviços não finalize convenientemente a tarefa contratada, a despeito de ter já em mãos o pagamento, representado por cheque do consumidor. Ora, o emitente não pode sustar a liquidação do título, a pretexto de preservar seus direitos contratuais e forçar a terminação dos serviços. Até mesmo porque o cheque pode ter sido transferido, por endosso, a terceiro de boa-fé, que se encontra amparado pelo direito cambiário. Ao consumidor, no caso, resta apenas as ações cíveis de responsabilização do empresário inadimplente. Quem emite cheque, pratica ato de vontade, ao qual nunca está obrigado. Se o faz, concorda com a circulação do crédito, segundo o regime de direito cambiário. Portanto, submete-se, por sua própria vontade, a ter que satisfazer o crédito perante o terceiro de boa-fé para, depois, demandar quem se enriqueceu indevidamente, às suas custas”.

Data venia ao i. autor, não podemos concordar com este pensamento.

Explica-se.

Quando o credor do título (beneficiário) não cumprir com obrigação que lhe cabia no negócio celebrado com o devedor (emitente), e estando o cheque, ainda em poder do credor, pode o devedor perfeitamente obstar seu pagamento, sustando-o.  Como o título de crédito ainda não circulou, significa que não se desvinculou do negócio jurídico fundamental, não havendo que se cogitar na aplicação do princípio da autonomia, bem como de seus subprincípios.

Aplica-se, in casu, a regra da exceptio no adimpleti contratus prevista no art. 476 do CC. Se a parte não cumpriu sua obrigação no contrato, não pode exigir que o outro também cumpra a sua.

Assim, suponha-se que um indivíduo contrate a prestação de serviço de uma empreiteira, repassando-lhe um cheque para quitar-lhe a dívida. Posteriormente, considerando que a empresa não efetuou o serviço contratado, o indivíduo, a nosso ver, pode sustar o cheque desde que este esteja sob a guarda da empreiteira. Caso a prestadora de serviço o tenha transferido a terceiro de boa-fé, isso não seria possível em razão da aplicação da autonomia dos títulos de créditos.

Ademais, importa mencionar que esse raciocínio, além de não ir de encontro às regras do direito cambiário, evita o desgaste desnecessário de litigar em juízo. Diz-se isso porque se não assiste a empreiteira o direito do crédito que lhe fora repassado, qual o fundamento de não poder sustar o cheque? Qual seria a lógica de se deixar compensar o cheque em favor da prestadora de serviço, que não cumpriu sua obrigação, para, logo em seguida, pleitear em juízo a restituição do mesmo valor?

Como se verifica, são vários os motivos que justificam a possibilidade de se sustar o cheque quando seu portador restar inadimplente com a obrigação originária, desde que, frisa-se, o título não tenha sito transferido a terceiro de boa-fé.

Em suma, este é nosso posicionamento.
  




[1] Art. 614, inciso I do CPC.

Um comentário :

  1. Muito esclarecedor o artigo, porém, bastante complicado pensar sob essa ótica de não sustação caso a cártula tenha sido endossada a terceiro de boa-fé. Difícil saber se isso de fato ocorreu pois, até mesmo pelo princípio da autonomia que norteia os títulos de crédito, sendo que o emitente perde total controlo sobre o cheque emitido. Logo, na condição de sacador, perco total domínio dessa cártula. Redunda em dizer, destarte, que não poderei jamais sustar o cheque uma vez que não terei condições de saber se se encontra em poder do (primeiro) beneficiário.

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